domingo, 1 de fevereiro de 2009

Príncipe Real

São perfeitos os teus passos, como compassos fáceis de gostar.
Levas o sol contigo para todo o lado, as mãos nos bolsos e aquele teu ar de quem está nem aí. Hoje faltas-me. Está frio no jardim. Ninguém se senta no banco debaixo da árvore.
O bule de chá escalda-me as mãos, a chávena aquece. Cheiras a limão e canela, junto-te uma colher de mel. Rabisco o guardanapo. Pelos dedos passam-me cigarros apressados , tiram o lugar do lápis de carvão que pouso. Risco-te, amachuco as folhas.
O teu gingar fascina-me, o teu olhar de quem está nem aí. Acendem os candelabros laranja. O cão ladra, rebola na relva e enche-se de terra. Os rapazes também se enchem de terra e perdem muitas vezes a bola.
Pareces um gato quando andas, olhar tigre, felino. Não desvias os olhos dos meus, não pares.
Tenho três livros espalhados em cima da mesa, trinta e tal árvores no jardim e a nossa que vale por muitas. Conheces o seu perfume envolvente, alquimia da alma.
Bebo-te até ao fim, peço mais água. Faço-te festas no cabelo, tocas-me nas pernas. Chiu... Podes beber da minha, digo-te. A colher cai ao chão. Espalhas os livros.
Adoro como andas, a fonte não pára, as folhas secas fazem barulho ao pisar. Encantas. A estátua do Homem que ri, bronze. Como a tua pele morena queimada de mar.
Escaldas, o teu fumo dança como o fumo do tabaco que queimo. Queimas. Não pares. Os velhos jogam sempre às cartas, joga com calma. O barulho dos pratos no balcão. Quero-te, molho só os lábios. A música toca, o CD é sempre o mesmo. Estico um pé, balanço o corpo de olhos fechados. Os pássaros voam, adoro o teu andar.
Príncipe, quase, Real.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Chuva II

Hoje andei à chuva, com o casaco preto de sarja que não serve para dias molhados. E o carapuço da camisola de veludo húmido, o cabelo molhado e gotas que me pingavam da alma e escorriam pela ponta do nariz arrebitado e se fundiam em quantas sardas nem sei. O silêncio da cidade que nunca pára, as vidas com cheiro a gasolina e perfume barato. Correm, pedalam, aceleram e buzinam. Chove. Eu levava as mãos soltas, em luvas cortadas, de preocupações ausentes. Trânsito sobe, rio ao longe para quem desce. Eu desço, que assim os santos ajudam. Chuvinha pegada, miúda, molha tolos, que me esmagou por completo e me fez ser eu de novo. Chuva quase quente, ou foi ao que me sentiu. Um calor que não sei traduzir em palavras. Só as contas do colar de osso que trago de amuleto me pareciam frias, num delicioso contraste. Um quase orgasmo, muito fugaz, muito leve. Amontoam-se nas entradas dos prédios, refilam e há todo um desfile exagerado de guarda-chuvas foleiros, quebrados pelo vento. Param nas passadeiras, olham de lado. Eu canto. Por momentos desejei ficar assim, à chuva com frio no pescoço e o cabelo a pingar, toda a tarde. Escondida no passeio, na calçada escorregadia, feita detalhe. Candeeiro de ferro na parede, trepadeira branca. Camuflada entre a montra do barbeiro e a loja de discos velhos. Prolongando a onda de vida, electrizante que me afogou. Facilmente percebi que me ia cansar, que os ossos iam quebrar de tanto bater. Que a ganga não ia aguentar mais salpicos de água lamacenta. Prazer! Fugaz! Um arrepio perderia o encanto se durasse mais que um respirar. Um já-está, passou. Quase sente, gosto e foge. Bom. Boa chuva, boa cidade, vida boa.