quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
Chuva II
Hoje andei à chuva, com o casaco preto de sarja que não serve para dias molhados. E o carapuço da camisola de veludo húmido, o cabelo molhado e gotas que me pingavam da alma e escorriam pela ponta do nariz arrebitado e se fundiam em quantas sardas nem sei. O silêncio da cidade que nunca pára, as vidas com cheiro a gasolina e perfume barato. Correm, pedalam, aceleram e buzinam. Chove. Eu levava as mãos soltas, em luvas cortadas, de preocupações ausentes. Trânsito sobe, rio ao longe para quem desce. Eu desço, que assim os santos ajudam. Chuvinha pegada, miúda, molha tolos, que me esmagou por completo e me fez ser eu de novo. Chuva quase quente, ou foi ao que me sentiu. Um calor que não sei traduzir em palavras. Só as contas do colar de osso que trago de amuleto me pareciam frias, num delicioso contraste. Um quase orgasmo, muito fugaz, muito leve. Amontoam-se nas entradas dos prédios, refilam e há todo um desfile exagerado de guarda-chuvas foleiros, quebrados pelo vento. Param nas passadeiras, olham de lado. Eu canto. Por momentos desejei ficar assim, à chuva com frio no pescoço e o cabelo a pingar, toda a tarde. Escondida no passeio, na calçada escorregadia, feita detalhe. Candeeiro de ferro na parede, trepadeira branca. Camuflada entre a montra do barbeiro e a loja de discos velhos. Prolongando a onda de vida, electrizante que me afogou. Facilmente percebi que me ia cansar, que os ossos iam quebrar de tanto bater. Que a ganga não ia aguentar mais salpicos de água lamacenta. Prazer! Fugaz! Um arrepio perderia o encanto se durasse mais que um respirar. Um já-está, passou. Quase sente, gosto e foge. Bom. Boa chuva, boa cidade, vida boa.
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